02/04/2009

Crônicas de Mil Coisas



O morcego, o namorado e a faxineira
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Usha Velasco*
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Saí da cama completamente zonza, como sempre, porque eram sete da manhã e eu detesto acordar cedo. Mas era preciso enfrentar o dia, conforme o despertador insistia em me lembrar. Dei dois passos, ainda sem óculos, e estranhei quando vi o que parecia ser um bocal de lâmpada pendurado no trilho da cortina. O que estaria fazendo aquele objeto naquele lugar? Quem o teria pendurado, e por quê?

Apertei os olhos tentando focar melhor a estranha imagem, mas a miopia não facilitou. Decidi procurar os óculos, suspirando desanimada, porque nunca sei onde eles estão; tenho certeza de que à noite ganham vida, usam aquelas duas pernas para fugir de mim e ficam rindo baixinho em seu esconderijo. Mas nessa manhã eles foram camaradas: estavam na mesa da sala, bem à vista.

De volta ao quarto, já de óculos, a surpresa: o estranho objeto escuro no teto do meu quarto era um morcego. Corri de novo para a sala, dessa vez para pegar a câmera, rezando para o bichinho não fugir enquanto isso. Não precisava ter me preocupado; fotografei-o de pertinho, acendi as luzes, usei o flash, cheguei a cutucá-lo para ver se ele abria as asas e colaborava para melhorar a foto, mas nada. Ele não demonstrou a menor disposição para abrir mão do sagrado direito de dormir. Sortudo.

Acordei minha filha para mostrar a novidade; ela, que também detesta levantar cedo, não achou nada demais naquilo e voltou para a cama resmungando. Conseguiu, porém, registrar na cabeça duas instruções importantes. A primeira foi um recado para a faxineira: não mexer no morcego e não matá-lo em hipótese alguma. A segunda foi um pedido: não comentar a insólita visita matinal com meu namorado. Se ele não gostava de conviver com nosso cachorrinho schnauzer nem com nossa gatinha vira-lata (ambos, para seu duradouro alívio, dados em adoção depois que mudamos para um apartamento menor), que dirá com um morcego...

Não que ele (o namorado) fosse terminar tudo ou se recusar a pernoitar na minha casa; sua reação seria provavelmente tentar evitar que ele (o morcego) entrasse de novo, mas para isso teríamos que manter as janelas fechadas, coisa que minha grave claustrofobia, um dos traços mais fortes da minha personalidade, jamais permitiria.

Fui para o trabalho arquitetando uma solução para o conflito amoroso-zoológico-familiar que se anunciava. Morcegos, como todos sabem, dormem de dia e saem à noite. Se aquele elegesse o meu quarto como dormitório cotidiano, ele e meu namorado iam acabar se encontrando pela manhã – e eu teria que escolher entre os dois. Minha filha, é claro, ficaria do lado do morcego. Aliás, se o bichinho passasse o dia no meu quarto, à noite ela já estaria chamando-o por um nome de gente, provavelmente duplo, como Vladimir Roberto ou Ezequiel Matias (nosso cachorrinho chamava-se Paco Alberto; a gata, Florbela Espanca).

Quando voltei para casa, porém, não havia mais problema a resolver. O morcego não estava no meu quarto, embora ainda fosse dia claro. Fui direto à cozinha perguntar à Lindaura, minha faxineira, homônima da secretária do Analista de Bagé, de Veríssimo: “Cadê o morcego, Lindaura?”

“Ah, saiu”, respondeu ela sem me olhar nos olhos.
“Como assim, saiu? Saiu de que jeito?”
“Aaah... eu entrei no quarto e ele... hummm... saiu voando e foi embora”, respondeu ela, emendando as últimas palavras e fugindo para a área de serviço.

Conheço Lidaura há pouco tempo, mas acho que ela é hiperativa, o que a torna a faxineira que toda dona-de-casa pediu a Deus: é uma máquina de trabalhar, não pára um minuto, tem uma energia aparentemente inesgotável. Mas suspeito que ela não se dê muito bem com animais. Suspeito que hoje, no meu quarto, tenha ocorrido um morcegocídio.
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* Usha Velasco é jornalista do Sindjus e publica as Crônicas de Mil Coisas semanalmente.

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